INTRODUÇÃO
Em 2005, Allander et al.1 identificaram um novo vírus em amostras de lavado nasofaríngeo de crianças com infecções do trato respiratório, inicialmente sem agente etiológico conhecido. Denominado primata bocaparvovírus (HBoV), este vírus emergente é reconhecido mundialmente e associado a infecções respiratórias e gastrointestinais2. Esta revisão aborda a taxonomia, biologia, epidemiologia, patogênese e métodos de diagnóstico do HBoV.
CLASSIFICAÇÃO, ESTRUTURA, ORGANIZAÇÃO GENÔMICA E PROTEICA
Segundo a classificação mais recente do Comitê Internacional de Taxonomia Viral (ICTV), o HBoV pertence ao gênero Bocaparvovirus, subfamília Parvovirinae, família Parvoviridae, ordem Piccovirales, classe Quintoviricetes, filo Cossaviricota, reino Shotokuvirae e domínio Monodnaviria3. Esse gênero engloba uma variedade de vírus que infectam mamíferos, incluindo humanos e primatas não humanos4. O HBoV, junto com o parvovírus bovino (BPV) e o minúsculo vírus canino (CnMV), são os integrantes mais conhecidos do gênero, embora novos membros tenham sido recentemente identificados. Atualmente, o gênero Bocaparvovirus inclui 31 espécies, distribuídas em diferentes hospedeiros, como cães, morcegos, lagomorfos, pinípedes, primatas, roedores e ungulados3. Em relação ao HBoV humano, este é classificado em quatro genótipos: HBoV-1 a HBoV-4. Os genótipos HBoV-1 e HBoV-3 pertencem à espécie Bocaparvovirus primate 1, enquanto HBoV-2 e HBoV-4 são membros da espécie Bocaparvovirus primate 25.
O HBoV é um vírus pequeno, icosaédrico e não envelopado, com diâmetro de 18 a 26 nm, contendo um genoma de DNA linear de fita simples (ssDNA) com aproximadamente 5.300 pb, podendo ter polaridade negativa ou positiva1,6. A maioria das partículas virais encapsuladas (cerca de 95%) apresenta polaridade negativa1. Seu capsídeo é composto por 12 capsômeros pentaméricos, formados por 60 cópias das proteínas estruturais VP1 e VP27 (Figura 1).

Fonte: Adaptado de SwissBioPics, 2024 (https://viralzone.expasy.org/567).
O capsídeo consiste em 60 cópias das proteínas estruturais VP1 e VP2, formando 12 capsômeros.
Figura 1 - Representação esquemática da partícula de HBoV
O genoma do HBoV contém três regiões abertas de leitura (open reading frame - ORF): ORF1, que codifica proteínas não-estruturais (NS), como NS1, NS1-70, NS2, NS3 e NS4; ORF2, que codifica as proteínas estruturais VP1 e VP2 do capsídeo; e ORF3, que codifica a fosfoproteína nuclear (NP) NP11,7,8,9. O genoma do HBoV é delimitado por sequências palindrômicas não-codificadoras, conhecidas como "repetições terminais invertidas", formando estruturas de hairpin, com 140 nucleotídeos na extremidade 5' e 200 nucleotídeos (nt) na extremidade 3'10,11 (Figura 2).

Fonte: Elaborado pelas autoras.
Incluem-se as proteínas não-estruturais NS1, NS1-70, NS2, NS3 e NS4 (ORF1), a fosfoproteína nuclear NP1 (ORF3) e as proteínas do capsídeo viral VP1-3 (ORF2).
Figura 2 - Representação esquemática da codificação das proteínas pelas três regiões abertas de leitura (ORF) dos HBoV
A NS1 do HBoV, com massa molecular de 100 kDa, é multifuncional, atuando como ligase e endonuclease na região N-terminal, transativadora na região C-terminal, e apresenta atividade ATPase e helicase na região intermediária. Essa proteína desempenha um papel essencial na replicação do DNA viral2,12,13,14,15. Variantes adicionais da NS1, como NS1-70, NS2, NS3 e NS4, foram identificadas no genótipo HBoV-1 em estudos de transfecção realizados em células epiteliais das vias aéreas. NS1-70, uma isoforma de NS1 com 70 kDa, inibe a ativação do NF-kB durante a infecção viral, contribuindo para a evasão do HBoV da resposta imune inata10,16. As proteínas auxiliares NS2, NS3 e NS4, com massas moleculares de 66 kDa, 69 kDa e 34 kDa, respectivamente, possuem funções similares às da NS114,17.
A NP1 do gênero Bocaparvovirus tem massa molecular de 25 kDa e é exclusiva desse grupo viral. Inicialmente associada à parada do ciclo celular e apoptose, além do bloqueio da produção de interferon, a função completa da NP1 ainda está sendo elucidada. Estudos como os de Zhang et al.18, Li et al.19 e Zhu et al.20 destacam seu papel crucial na expressão de proteínas do capsídeo viral e sua participação direta na replicação do DNA viral.
A VP1 dos HBoV possui massa molecular de 74 kDa, enquanto a VP2 tem 64 kDa. Juntas, VP1 e VP2 formam o capsídeo icosaédrico do vírus. Essas proteínas se ligam aos receptores celulares e, após a entrada na célula hospedeira, são transportadas para o núcleo junto com o genoma viral. A VP1 possui atividade enzimática de fosfolipase A2 na região N-terminal, essencial para a liberação das partículas virais do endossomo e subsequente transferência para o núcleo celular, onde inicia a replicação do genoma viral. A VP2 desempenha papel na indução da resposta imune humoral, sendo fundamental para a produção de anticorpos neutralizantes2,13,15,21.
As proteínas do HBoV variam em tamanho entre os genótipos. No genótipo HBoV-1, o gene completo NS1 possui 1.928 nt e codifica um polipeptídeo de 643 aminoácidos (aa). O gene NP1 tem 660 nt, e a proteína pode variar em comprimento entre 214 e 219 aa, de acordo com as diferentes cepas. As proteínas VP1 e VP2 codificam para proteínas de 671 aa e 542 aa, respectivamente12,22 (Figura 3). Diferentemente de outros parvovírus, como o parvovírus, como o bovino (BPV) e o minúsculo vírus canino (CnMV), os HBoV não codificam para a terceira proteína estrutural VP3.
REPLICAÇÃO
A replicação dos HBoV ainda não foi totalmente elucidada, mas pode ser inferida a partir do conhecimento sobre outros membros da subfamília Parvovirinae, como o vírus B19. Os mecanismos replicativos do B19 são bem descritos e servem de base para entender o ciclo de vida dos demais parvovírus, incluindo os HBoV, devido à relação de parentesco dentro da mesma subfamília4,23.
O ciclo replicativo dos HBoV inicia-se com a entrada do vírus na célula hospedeira via endocitose, utilizando receptores de membrana nas células da mucosa gastrointestinal ou respiratória, ainda não identificados. A ligação aos receptores celulares ocorre pela interação da proteína VP1 do capsídeo viral (Figura 4, etapa 1). Após a entrada, os HBoV são transportados por endossomos iniciais até se transformarem em endossomos tardios (Figura 4, etapas 2 e 3). A liberação das partículas virais dos endossomos tardios é um processo não totalmente compreendido. No citoplasma, os HBoV são transportados pelo citoesqueleto celular até o núcleo, atravessando os poros da carioteca (Figura 4, etapa 4). No núcleo, ocorre o desnudamento do genoma viral (Figura 4, etapa 5), seguido pela replicação viral, que depende estritamente da fase S do ciclo celular, fornecendo o ambiente e as enzimas necessários à transcrição do genoma4,24. A replicação começa com a síntese de uma fita complementar de DNA a partir do ssDNA de polaridade negativa, utilizando as regiões palindrômicas na extremidade 3´OH como iniciadores, mediada pela DNA polimerase celular (Figura 4, etapas 6 e 7a). A síntese continua até a extremidade em hairpin 5´, onde as fitas viral e complementar celular se fundem, formando uma estrutura quase circular de DNA de fita dupla, clivada pela NS1 viral (Figura 4, etapa 7b). A NS1 age como endonuclease, criando um novo sítio 3´OH livre para iniciar novas sínteses de fitas complementares de DNA ou para encapsulação na formação de novos vírus4,25 (Figura 4, etapas 8a, 8b, 12, 13, 14, 15 e 16).

Fonte: Adaptado de Shao et al. (2021)24.
Uma célula epitelial ciliada das vias aéreas está representada contendo os cílios e moléculas de junção. O HBoV-1 entra nas células por meio da ligação a um receptor viral desconhecido, que é expresso nas células apicais (ciliadas) e basais, conforme indicado, e por endocitose mediada por receptor, seguida de tráfego intracelular (etapas 1 a 3). O vírus escapa do endossoma tardio e entra no núcleo (etapa 4). No núcleo, o genoma viral ssDNA é convertido na forma replicativa dsDNA (etapas 5 a 8). O DNA viral continua se replicando no núcleo (etapas 12 a 16) e produz as proteínas virais NS e VP (etapas 9 a 11), seguido pelo empacotamento do genoma no capsídeo vazio (etapas 16 a 18). Por fim, a progênie viral é liberada das células infectadas (etapas 19 e 20).
Figura 4 - Representação esquemática do ciclo replicativo do HBoV-1
Os mecanismos de transcrição e tradução das proteínas dos HBoV permanecem pouco compreendidos. Os RNA mensageiros (mRNA) sintetizados a partir das moléculas de DNA de fita dupla são transcritos pela RNA polimerase celular e exportados para o citoplasma, onde são traduzidos em proteínas pelos ribossomos (Figura 4, etapas 9 e 10). Esses processos parecem ocorrer independentemente da fase S do ciclo celular, sugerindo que a transcrição de mRNA e a tradução de proteínas virais podem ocorrer antes da replicação do genoma viral. Portanto, capsídeos pré-formados podem estar presentes quando ocorre a produção de genomas virais23,26. Após sua formação no citoplasma, as proteínas estruturais VP1 e VP2, que constituem o capsídeo viral, se organizam em capsômeros e são transportadas de volta para o núcleo celular. No núcleo, esses capsômeros se ligam ao DNA viral, formando a progênie viral8,14 (Figura 4, etapas 11, 17 e 18). Uma vez formadas, as partículas virais são liberadas do núcleo para o citoplasma e, subsequentemente, para fora da célula infectada. A liberação da progênie viral pode ocorrer por endocitose ou lise celular (Figura 4, etapa 19 e 20). O mecanismo exato pelo qual os HBoV são liberados pela célula hospedeira ainda não foi completamente esclarecido. Essas partículas virais maduras estão completamente capacitadas para infectar células vizinhas, iniciar novos ciclos de replicação e infectar novos hospedeiros14,24.
Estudos ressaltaram que o processo replicativo do HBoV-1 está intimamente associado aos fatores de danos e reparo do DNA da célula hospedeira, ao contrário de outros parvovírus que geralmente dependem da DNA polimerase celular para replicação8,24,25. A replicação dos outros genótipos de HBoV (-2, -3 e -4) ainda não foi suficientemente investigada para determinar se seguem o mesmo padrão observado no HBoV-1.
PATOGÊNESE E RESPOSTA IMUNE
Os HBoV foram detectados em várias amostras biológicas, incluindo respiratórias, fezes, soro, saliva, líquido cefalorraquidiano, urina, tonsilas e intestino, sugerindo disseminação viral pelo organismo. No entanto, os mecanismos exatos pelos quais o HBoV causa doença ainda não estão completamente elucidados11,27,28,29,30,31. A patogênese e a replicação do HBoV são pouco compreendidas devido à falta de linhagens celulares permissivas para o cultivo viral e modelos animais experimentais. O modelo de cultivo HAE-ALI (células epiteliais primárias brônquicas humanas pseudoestratificadas cultivadas em interface ar-líquido) tem sido utilizado para investigar os efeitos do HBoV no epitélio das vias aéreas. Durante a infecção, são observados danos como perda de cílios, desintegração da integridade celular, ruptura da barreira epitelial e hipertrofia das células epiteliais. Esses efeitos sugerem que o HBoV pode causar destruição dos tecidos epiteliais respiratórios ou entéricos após a infecção. Além do HAE-ALI, outras linhagens celulares, como HEK293 (células renais embrionárias humanas) e Caco-2 (adenocarcinoma colorretal humano), são utilizadas para estudar a patogenia do HBoV9,32,33.
O HBoV infecta células hospedeiras por meio de gotículas respiratórias e aerossóis, transmitidos ao trato respiratório via mãos contaminadas ou inalados durante a respiração. Após ingressar na nasofaringe, infecta células epiteliais, causando uma infecção no trato respiratório superior, que pode se estender aos pulmões. A infecção do trato gastrointestinal ocorre pela ingestão de partículas virais por via fecal-oral, seja por contato direto ou ingestão de água ou alimentos contaminados. Após a infecção inicial de células epiteliais respiratórias ou intestinais, o HBoV pode eventualmente entrar na corrente sanguínea (viremia), disseminando-se pelo organismo e afetando outros órgãos e tecidos, como meninges, rins e tonsilas9,34.
O HBoV é conhecido por adotar estratégias para escapar dos sistemas de defesa do hospedeiro, facilitando sua replicação contínua. Estudos indicam que o vírus modula a resposta imunológica do hospedeiro interferindo na expressão de genes relacionados à resposta imune, suprimindo a produção de citocinas inflamatórias como os interferons, essenciais na resposta antiviral inicial. Essa capacidade de modular a resposta inflamatória ajuda o HBoV a evitar o reconhecimento e resposta antiviral do hospedeiro, promovendo sua replicação25,26,35. Durante a infecção inicial, padrões moleculares associados a patógenos (PAMP), como DNA viral e proteínas virais, são reconhecidos por receptores de reconhecimento padrão (PRR), iniciando a via de sinalização que leva à produção de interferons tipo I (IFN-α/β). O fator regulador de interferon 3 (IRF-3) desempenha papel crucial nesse processo36,37. Estudos específicos revelaram que as proteínas não-estruturais NP1 e NS1 do HBoV inibem a produção de IFN-β ao ligarem-se ao domínio de ligação de DNA do IRF-3, interrompendo assim a produção de interferons tipo I34,38.
A resposta imune celular contra o HBoV está caracterizada por uma forte resposta inflamatória, com altas concentrações de fator de crescimento endotelial, TNF-α, TNF-β e inibidores teciduais de metaloproteínases (TIMP-1)24. Comparada a outras infecções virais respiratórias, há detecção elevada de INF-γ e IL-2. Em crianças com bronquiolite causada pelo HBoV, são observados aumentos nas concentrações de IFN-γ, IL-2 e IL-4, possivelmente contribuindo para a exacerbação da asma38. Pacientes infectados pelo HBoV frequentemente desenvolvem anticorpos IgG e IgM específicos para as proteínas virais VP1 e VP2. A resposta imune começa com IgM e posteriormente forma IgG. Os níveis de anticorpos IgG podem ser detectados por vários anos após a infecção e são usados em estudos soroepidemiológicos para avaliar a prevalência da infecção pelo HBoV na população. Contudo, aproximadamente 40% dos pacientes não desenvolvem imunidade vitalícia36,37,39.
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
A infecção por HBoV pode manifestar uma variedade de sintomas clínicos, sendo os respiratórios e gastrointestinais os mais comuns. O espectro das infecções causadas por HBoV varia desde casos assintomáticos e autolimitados, nos quais o sistema imune resolve a infecção sem tratamento específico, até infecções leves do trato respiratório superior. Em casos mais graves, pode ocorrer infecção severa do trato respiratório inferior, potencialmente fatal, afetando todas as faixas etárias40,41,42,43,44.
Manifestações respiratórias
A infecção por HBoV é predominantemente respiratória, com o genótipo 1 (HBoV-1) frequentemente associado. Os sintomas variam de leves, como um resfriado comum, a pneumonia grave, especialmente em idosos e imunocomprometidos43,44,45. Os sintomas comuns incluem congestão nasal, espirros, dor de garganta, dispneia, rinite, diarreia, vômitos, otite média, tosse, febre, pneumonia e asma, semelhantes aos de outras infecções respiratórias, dificultando o diagnóstico específico do HBoV45,46,47,48,49. O diagnóstico requer ensaios moleculares, pois a infecção por HBoV é clinicamente indistinguível de outras infecções respiratórias50. Coinfecções com outros vírus respiratórios, como rinovírus, adenovírus e influenza A/B, são comuns e podem influenciar a gravidade dos sintomas43,44. A infecção por HBoV afeta tanto crianças quanto adultos, com um risco aumentado de pneumonia grave em adultos imunocomprometidos, como aqueles com câncer ou que passaram por transplantes43,44,45,51.
O HBoV frequentemente causa otite média aguda em infecções respiratórias do trato superior52,53. Há associações com cardiopatias, como insuficiência cardíaca e lesões cardíacas congênitas, além de doença pulmonar obstrutiva crônica, bronquiectasia, fibrose cística e asma6,53,54,55.
A tomografia computadorizada é útil para avaliar as manifestações respiratórias da infecção por HBoV, revelando consolidação bilateral, opacidades em vidro fosco, espessamento interlobular/intralobular, espessamento da parede brônquica, nódulos centrilobulares e derrame pleural. Não há diferenças significativas nos padrões de tomografia entre pacientes imunocompetentes e imunocomprometidos, indicando que as manifestações radiológicas não estão diretamente ligadas ao estado imunológico do paciente45,56.
Manifestações entéricas
A infecção por HBoV pode causar sintomas gastrointestinais, como náuseas, vômitos, diarreia e dor abdominal. As manifestações entéricas do HBoV são menos estudadas do que as manifestações respiratórias, mas evidências sugerem uma possível associação entre o HBoV e sintomas gastrointestinais43,44.
A primeira descrição do HBoV associado à diarreia aguda ocorreu em um estudo na Espanha entre 2005 e 2006, onde foi identificado como o único patógeno nas fezes57. A relação exata entre o HBoV e sintomas entéricos necessita de investigações adicionais para melhor compreensão dessa associação. Estudos sugerem que os sintomas gastrointestinais podem ser secundários à infecção por HBoV do trato respiratório ou decorrentes de coinfecções com outros patógenos virais gastrointestinais, como norovírus ou adenovírus entérico58,59,60.
Os genótipos HBoV-2, HBoV-3 e HBoV-4 estão frequentemente associados a quadros de gastroenterite. Embora o HBoV-1 seja classicamente relacionado a infecções respiratórias na maioria dos estudos, sua presença em infecções gastrointestinais não é inexistente. No entanto, não há evidência científica definitiva se sua detecção nas fezes está ligada à excreção proveniente de infecções do trato respiratório ou se é capaz de infectar efetivamente o trato gastrointestinal61,62,63.
Muitas infecções entéricas causadas por HBoV podem ser assintomáticas ou apresentar sintomas leves58,59. Um estudo realizado no Brasil, em 2012, identificou HBoV em 60% das crianças menores de 5 anos de idade sem sinais clínicos de gastroenterite (grupo controle)63. A incidência de sintomas gastrointestinais associados ao HBoV varia entre estudos e populações, assim como a gravidade, que pode incluir desde casos leves de desconforto abdominal e diarreia autolimitada até casos mais graves de vômitos persistentes e diarreia profusa. Em grupos vulneráveis, como crianças pequenas, idosos e imunocomprometidos, a infecção pode gerar complicações mais severas, requerendo cuidados médicos adequados64,65,66. A verdadeira prevalência e os mecanismos subjacentes das manifestações entéricas das infecções por HBoV ainda precisam ser determinados.
Manifestações do sistema nervoso central e outras associações
Manifestações do sistema nervoso central (SNC) associadas ao HBoV foram relatadas em estudos que documenatram casos de encefalite em adultos e crianças em Bangladesh, Sri Lanka e China30,31,67. Observou-se ainda o desenvolvimento de encefalopatias durante infecções respiratórias graves provocadas pelo vírus68,69. Esses achados sublinham a importância de considerar o HBoV como uma possível causa de sintomas neurológicos em pacientes com infecções respiratórias, enfatizando a necessidade de estudos adicionais para elucidar sua patogênese e impacto clínico nas infecções do SNC68,70,71.
Casos de miocardite subaguda associada ao HBoV foram descritos em crianças. O primeiro envolveu uma criança de 2 anos de idade com pneumonia72; o segundo, um bebê de 8 semanas com insuficiência cardíaca aguda e histórico de tosse seca duas semanas antes73; e o terceiro, uma criança de 13 meses com dificuldade respiratória74. Adicionalmente, um caso não fatal de miocardite foi relatado em uma adolescente de 13 anos que apresentou dor torácica após infecção recente do trato respiratório superior75.
Houve também relato de um caso de hepatite associada ao HBoV em uma menina de 2 anos na Turquia. A paciente, internada na unidade de terapia intensiva, apresentava dificuldade respiratória e hepatite. O HBoV foi detectado em amostras da região oral, nasofaríngea e de sangue total por PCR convencional, sendo o único patógeno identificado76.
Infecção crônica
A infecção crônica pelo HBoV pode afetar vários sistemas do corpo humano. No sistema respiratório, os sintomas comuns incluem tosse persistente, rinorreia, dispneia e sibilância. No sistema gastrointestinal, os sintomas incluem diarreia, vômitos e dor abdominal43,44,45. Manifestações neurológicas, como encefalite, meningite e convulsões, também podem ocorrer68,70,71.
Os mecanismos que levam à infecção crônica ainda não são completamente compreendidos. O HBoV-1 pode persistir na nasofaringe por semanas ou até um ano após a infecção77. No entanto, não se sabe se o vírus estabelece latência por integração ao genoma da célula hospedeira ou como epissomo8. Estudos sugerem que as amígdalas e adenoides podem ser a fonte da eliminação prolongada do vírus, já que o DNA viral é frequentemente encontrado no tecido tonsilar de crianças com amígdalas hipertróficas78,79,80. A excreção prolongada e intermitente do HBoV após a infecção primária não parece estar relacionada às condições imunológicas do hospedeiro, ocorrendo tanto em pacientes imunocompetentes quanto imunocomprometidos81.
TRATAMENTO E CONTROLE
As infecções por HBoV ainda não possuem um tratamento específico aprovado, e não há estudos comparativos sobre drogas antivirais46,82. Um estudo com prednisona em crianças finlandesas com sibilância devido à infecção por HBoV-1 não mostrou resultados efetivos83. Além disso, não existem medidas preventivas para evitar a infecção. Portanto, o tratamento foca principalmente no alívio dos sintomas (respiratórios, entéricos ou crônicos) e no suporte adequado ao paciente82.
Para sintomas respiratórios, a abordagem inclui terapia de suporte com medidas para aliviar congestão nasal, tosse, febre e dificuldade respiratória. Analgésicos e antipiréticos são usados para reduzir a febre e aliviar o desconforto, enquanto agentes antitussígenos podem ser utilizados para a tosse excessiva, embora esta ajude na eliminação das secreções respiratórias48,82. Em casos graves, a oxigenoterapia pode ser necessária, empregando cânulas nasais, máscara facial ou ventilação mecânica82,84.
Nas infecções entéricas, recomenda-se a reposição de líquidos e eletrólitos perdidos devido às evacuações para evitar a desidratação, especialmente em crianças e idosos. A ingestão adequada de líquidos deve ser incentivada e, em alguns casos, pode ser necessária a administração intravenosa de fluidos82,84,85. Medicamentos como antidiarreicos e antieméticos podem ser prescritos para aliviar os sintomas85.
DIAGNÓSTICO
O diagnóstico clínico do HBoV é desafiador devido à similaridade de seus sintomas com os de outras infecções respiratórias e à dificuldade de isolamento viral em cultura de células, tornando essa técnica pouco viável9,32,33,34. Assim, métodos moleculares são essenciais para a sua detecção9,45,49, tanto que a descoberta inicial do vírus por Allander e colaboradores1 só foi possível por meio de técnicas de biologia molecular.
O principal método utilizado no diagnóstico do HBoV é a técnica da reação em cadeia da polimerase (PCR), a qual pode ser convencional (qualitativa) ou em tempo real (qPCR) (qualitativa e quantitativa). A PCR e a qPCR podem ser empregadas utilizando qualquer amostra clínica (i.e., fezes, soro, urina, secreções respiratórias ou líquor), sendo técnicas diretas de detecção do genoma viral. A qPCR, ao quantificar a carga viral, permite correlacionar cargas mais elevadas a uma provável infecção aguda6,9,29,45,49,86.
No geral, as técnicas de PCR e qPCR utilizam regiões especificas do genoma viral, mais comumente os genes NP1, NS1, VP1 e VP2, onde NP1 e NS1 são regiões conservadas e normalmente utilizadas na triagem das amostras para HBoV, enquanto as regiões VP1 e VP2 são mais diversas e eleitas para estudos genotípicos. A qPCR destaca-se por sua rapidez e sensibilidade em comparação à PCR convencional, embora apresente maior custo de execução86,87.
Kits multiplex comerciais, como o QIAstat-Dx Respiratory Panel (QIAGEN, Alemanha), permitem a detecção simultânea de vários vírus respiratórios, incluindo o HBoV88. Também foram desenvolvidos ensaios moleculares específicos para diferenciar genótipos do HBoV89. Apesar do potencial das plataformas de sequenciamento de nova geração (NGS) em detectar múltiplos patógenos rapidamente, seu alto custo ainda limita sua aplicação em laboratórios públicos com alto volume de amostras90,91.
Além das técnicas moleculares diretas, o diagnóstico também pode ser feito indiretamente pela detecção de anticorpos específicos em soro por meio de ensaios imunoenzimáticos (EIA ou ELISA), que identificam anticorpos IgM e/ou IgG contra a proteína recombinante VP2 do HBoV28,92. Testes de avidez para IgG podem distinguir infecções primárias de secundárias ou reativações93.
EPIDEMIOLOGIA
Desde a descoberta em 20051, o HBoV tem sido amplamente estudado quanto à sua epidemiologia global e associação com doenças respiratórias e gastrointestinais9,55,57,85,94. Embora afete indivíduos de todas as idades, é mais frequente em crianças de 6 a 24 meses83,95. A detecção de HBoV varia consideravelmente, com frequências de 1% a 56,8% em amostras respiratórias e de 1,3% a 63% em fezes, dependendo da região geográfica. A prevalência média mundial de HBoV em infecções respiratórias é de 6,3%, enquanto em infecções gastrointestinais é de 5,9%9,85,96. Em crianças menores de 5 anos, a prevalência de HBoV associado à gastroenterite aguda é de 6,9%85. A soroprevalência do HBoV aumenta com a idade, variando de 40% em crianças de 18 a 23 meses a 100% em crianças acima de 2 anos, com uma alta soroprevalência de 73,7% em crianças menores de 5 meses de idade, atribuída à presença de anticorpos maternos92,97. A frequência de coinfecções virais em amostras respiratórias positivas para HBoV varia de 8,3% a 100%, enquanto em amostras fecais é de 46,7%9. Embora mortes associadas à infecção por HBoV tenham sido relatadas, não há uma taxa de mortalidade estabelecida para esse patógeno98,99.
O HBoV não apresenta um padrão sazonal claro, circulando ao longo do ano, com picos de casos observados durante o inverno e a primavera, períodos típicos para vírus respiratórios49,100. A sazonalidade do HBoV em infecções entéricas ainda é pouco compreendida. Um estudo na África do Sul indicou aumento da circulação do HBoV no verão e outono (dezembro a maio) em casos de gastroenterite aguda em crianças menores de 5 anos101. Em Hong Kong, Estados Unidos e Japão, a incidência de infecções entéricas causadas pelo HBoV é maior no outono e inverno102,103. Na Coreia do Sul e na Índia, o pico ocorre no verão e durante a estação das monções87,104. Por outro lado, alguns estudos, incluindo no Brasil, não identificaram um padrão sazonal claro49,59,105,106.
Os genótipos do HBoV infectam humanos com uma frequência decrescente: HBoV-1 > HBoV-2 > HBoV-3 > HBoV-492. O genótipo HBoV-1 está associado principalmente a infecções respiratórias, sendo sua detecção em amostras de fezes normalmente associada a infecções prévias ou concomitantes do trato respiratório9,104,107. No entanto, o HBoV-1 também pode causar sintomas entéricos, com a gastroenterite aguda sendo reportada como um dos motivos de procura de serviços de saúde em até 10% das crianças com infecções respiratórias agudas devido ao HBoV-1108. Isso levanta a hipótese de que o HBoV-1 possa ser um vírus pneumoentérico, iniciando a infecção no trato respiratório e disseminando-se para o intestino107. Mais estudos são necessários para esclarecer a associação (ou não) do HBoV-1 com episódios diarreicos. A prevalência do HBoV-1 varia de 4,4% a 25% em crianças sintomáticas com infecções respiratórias1,9, e sua prevalência em fezes de pacientes com sintomas de gastroenterite aguda é alta, oscilando de 30% a 79,6% em nível global60,61,65,101,109.
Os genótipos HBoV-2, HBoV-3 e HBoV-4 são considerados vírus entéricos devido à alta detecção em fezes associada a casos de gastroenterite aguda, sendo raramente encontrados em amostras respiratórias110,111,112. O HBoV-2 foi inicialmente identificado em amostras de fezes de crianças com paralisia flácida no Paquistão113, seguido pela descoberta do HBoV-3 em casos de gastroenterite aguda na Austrália108. O HBoV-4 foi identificado em um estudo multicêntrico com amostras fecais de crianças com paralisia flácida na Nigéria e na Tunísia, além de adultos com e sem diarreia nos Estados Unidos89. As prevalências de HBoV-2 e HBoV-3 variam de 1,4% a 24,6% e de 0,5% a 13,6%, respectivamente, em infecções entéricas101,110. Poucos estudos relatam a detecção de HBoV-4, e sua prevalência varia de 0% a 12%101,104,111,114.
No Brasil, o primeiro registro de HBoV ocorreu em 2007, por Albuquerque e colaboradores94, durante a análise de amostras fecais de crianças com gastroenterite aguda. Nesse estudo, a frequência de HBoV foi de 2%, com 21,4% das amostras apresentando coinfecção com rotavírus, adenovírus entérico e norovírus. Desde então, diversos estudos foram conduzidos envolvendo a pesquisa desse agente, tanto em pacientes com síndrome respiratória aguda quanto com infecções gastroentéricas59,90,94,114,115-120.
Apesar dos esforços, dados sobre a incidência de HBoV associada a quadros respiratórios e diarreicos no Brasil ainda são escassos. Em adição, são poucos os estudos que, além da detecção, buscam a caracterização molecular dos genótipos, o que ampliaria em muito a visão epidemiológica da doença59,114,115,118,119. A prevalência de HBoV associado a infecções respiratórias é semelhante entre as diferentes regiões do Brasil: 5% a 15,9% no Nordeste121,122,123,124; 2,4% a 16,3% no Sudeste119,125,126,127,128; 12% no Sul129; 14,1% no Norte130; e 4% a 11,9% no Centro-Oeste131,132. Em contraste, os dados sobre a prevalência de HBoV associado a infecções entéricas são mais escassos, com incidência de 1,6% na Região Centro-Oeste59, 2% a 12,4% no Sudeste49,94,114, 10% a 24% no Norte63,130,133 e 41,9% no Nordeste116. Não há informações disponíveis na literatura sobre a prevalência de HBoV associado a casos de gastroenterite aguda na Região Sul do país. Outros estudos no Brasil indicam prevalências de HBoV em amostras fecais de pacientes com condições subjacentes, como HIV positivos e transplantados, variando de 13% a 21,4%117,134,135.
Os quatro genótipos de HBoV foram descritos no Brasil, com prevalências que seguem a tendência mundial. O HBoV-1 é o genótipo mais frequente, associado principalmente a doenças respiratórias (100%), mas também detectado em amostras fecais (38% a 94,8%). A circulação de HBoV-2 varia de 2,6% a 71,4%, enquanto o HBoV-3 é detectado em prevalências de 2,6% a 29,2% em infecções entéricas. O HBoV-4 é raramente detectado, com prevalência menor em comparação aos outros genótipos (0,8% a 1,6%)49,63,114,118,119,130,131.
CONCLUSÃO
Desde sua descoberta, o HBoV tem sido um patógeno relevante globalmente, associado a infecções respiratórias e gastrointestinais, especialmente em crianças. Sua complexa estrutura genômica e diversidade funcional das proteínas destacam sua adaptação evolutiva e interação eficaz com o hospedeiro humano. Ainda há lacunas na compreensão dos mecanismos virais, especialmente na transcrição e tradução das proteínas, essenciais para compreender seu ciclo de vida e impacto na saúde. O diagnóstico desafiador é superado por técnicas moleculares como PCR e qPCR, fundamentais para uma detecção precisa. A diversidade na detecção de genótipos ao redor do mundo, incluindo no Brasil, reflete a complexidade epidemiológica do HBoV, reforçando a necessidade contínua de estudos abrangentes para melhorar a compreensão de seu impacto na saúde pública.