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Revista Paraense de Medicina

versão impressa ISSN 0101-5907

Rev. Para. Med. v.20 n.1 Belém mar. 2006

 

ARTIGO ESPECIAL

 

Brasileiros pioneiros na história da microbiologia médica. 1. Rocha Lima (1879 – 1956).

 

 

Ítalo Suassuna

Professor de Microbiologia e Imunologia, Emérito da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade do Rio de Janeiro. Docente Livre, Professor Adjunto, Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

 

O carioca Henrique da Rocha Lima foi quem primeiro descreveu, de forma precisa, o agente causal do tifo epidêmico, ou exantemático, e, em 1916, o batizou como Rickettsia prowazekii. Homenageava, assim, a dois investigadores que o precederam e morreram por contaminação acidental. O nome de Rocha Lima, entretanto, é geralmente omitido por autores anglo-saxônicos, que preferem atribuir a descoberta a Howard Taylor Ricketts, um dos malogrados investigadores homenageados por Rocha Lima.

Este, foi sensível a essa discriminação. Em l950, durante o V Congresso Internacional de Microbiologia, no Rio de Janeiro, declarou Rocha Lima: “mesmo na literatura científica (...) nem sempre a verdade histórica é encontrada pura e livre da mascara convencional falseadora (...). Neste caso está sem dúvida a história da descoberta do agente causal do tifo exantemático...” São palavras que haviam sido destinadas a um congresso norte-americano, de 1939, e ao qual, como presidente da seção de riquetsioses , Rocha Lima não pudera comparecer.

A palavra “typhus” derivada do grego (fumaça, estupor) historicamente já fora empregada por Hipócrates, e aplicava-se aos estados de febre aguda, elevada e contínua, acompanhados de manifestações cutâneas máculo-papulosas. Já no final do século XIX, distinguiu-se, nesses quadros, aqueles associados a uma patologia intestinal, designados pelo alemão Schoenlein (1839) como “typhus abdominalis”, em constraste com o tifo epidêmico que aparecia em aglomerações de miséria humana, como nas prisões e nas guerras, e que foi chamado “typhus exanthematicus”.

No tifo abdominal caracterizou-se uma bactéria, o bacilo de Eberth (Ebrthella typhosa, hoje, a Salmonella typhi), e na literatura anglo-saxônica, o quadro clínico correspondente passou a designar-se febre tifóide. Foi no tifo exantemático, a “Fleckfieber” dos alemães, que o agente etiológico foi revelado por Rocha Lima.

O termo tifo é ainda mal definido. No Brasil, quase sempre, é referido à febre tifóide, o que tem levado autores de livros médicos nacionais a grafarem “typhus” quando se referem às riquetsioses. Seria bem colocada, entretanto, a tendência a chamar-se tifo, as riquetsioses, como a febre maculosa em nosso ambiente, reservando-se febre tifóide, como já definido, para a salmonelose.

Antes de Rocha Lima, a causa do tifo clássico epidêmico, ou exantemático foi objeto de muitas pesquisas, apontando-se agentes bacterianos que não se confirmaram. Howard T. Ricketts em 1909-1910, abordou duas manifestações de tifo no hemisfério norte. O primeiro era conhecido como “spotted fever”, a febre maculosa das Montanhas Rochosas, e, o outro, chamado “tabardillo” coincidia com uma forma endêmica, e de menor gravidade, também chamada “pinta”, no México. Ricketts transmitiu a febre maculosa ao cobaio e apontou o papel do carrapato na sua transmissão. Referiu a observação de corpúsculos que “aparentemente tem relação específica” com a “spotted fever”. Corpúsculos esses de coloração bipolar no sangue do homem, macacos e cobaios, e, nos carrapatos, em glândulas salivares, tubo digestivo, ovidutos e ovos. Limitou-se a estes dados morfológicos. Dez anos decorreram para que essa descrição fosse confirmada como riquétsias. Em 1920, os também norte-americanos S. B. Wolbach & J.L. Todd, após a publicação de Rocha Lima, em 1916, descreveram o agente da febre maculosa das Montanhas Rochosas, como Dermacentroxenus rickettsii, nome que não prevaleceu, e é, hoje, referido como Rickettsia rickettsii. Ricketts veio a se contaminar e morrer ao estudar a transmissão do “tabardillo” pelo piolho, no México, em l910. Vale acrescentar que o papel de carrapatos na transmissão transovariana de doenças já fora demonstrada, em 1893, de forma insuperável, por Theobald Smith, ao estudar a febre do Texas, que acometia o gado vacum, descobrindo seu agente, a Babesia bigemina, e sua epidemiologia. Para Paul de Kruif este, raramente lembrado, foi o maior caçador americano de micróbios. Um passo extraordinário no estudo do tifo clássico foi dado por Charles Nicolle, cientista francês que, por isso foi galardoado com o prêmio Nobel de 1928. Trabalhando no Instituto Pasteur de Tunis, Nicolle (1909) observou que a transmissão da doença só se fazia extramuros. Uma vez os pacientes, sujos, despojados das vestes e lavados não mais transmitiam a doença. Suspeitando dos piolhos, abundantes até a internação, com eles obteve a transmissão da doença a macacos, e observou que os piolhos, e suas fezes, mostravam-se infectantes sete dias após um repasto nos doentes e que ocorria a infecção com o ato de coçar, após a picada. Descobriu também a sensibilidade do cobaio à infecção, nesse caso traduzida apenas pela curva febril. Nicolle não logrou observar o agente, pelo que concluiu ser um vírus filtrável, mesmo após a descoberta de Rocha Lima.

Filho de médico, Rocha Lima nasceu a 24 de novembro de 1879, no Rio de Janeiro, onde ingressou na Faculdade de Medicina. Ainda estudava quando a peste bubônica entrou no Brasil, pelo porto de Santos (1899). No ano seguinte chega ao Rio de Janeiro. O alarme congregou nomes que fizeram história no desenvolvimento da medicina experimental no país, como Adolfo Lutz, Oswaldo Cruz e Vital Brasil. Mais do que isso, os governos investiram em infra-estrutura com a criação de instituições para a produção de soros e vacina em duas fazendas: Butantã em São Paulo e Manguinhos no Rio de Janeiro.

No Instituto Soroterápico de Manguinhos, criado em 1900, Oswaldo Cruz, responsável pela direção técnica, assumiu a direção geral, dois anos após, substituindo o Barão de Pedro Afonso, de quem divergia quanto ao destino do instituto. Oswaldo Cruz já acreditava num futuro de investigação científica, superando a limitação da rotina. Objeto de confessada admiração de Rocha Lima, causou enorme comoção, referida por Rui Barbosa, a morte do Prof. Francisco de Castro, de pneumonia pestosa, mas, já então, o discípulo alinhara-se entre os que procuravam Manguinhos. De Oswaldo Cruz, comenta Rui Barbosa: “Os colaboradores de que necessitava, do seio lhe vão saindo (...) Respiram a sua ciência, a sua devoção, o seu entusiasmo. Abrasavam-se no contágio de sua energia, do seu desinteresse, de sua tenacidade”

Tendo provado dessa receita, após formado, Rocha Lima foi estudar na Alemanha para aperfeiçoarse em microbiologia e patologia. Em 1903 voltou a Manguinhos, onde foi um dos dois seus primeiros chefes de serviço e, mais tarde, substituto eventual de Oswaldo cruz na direção. Esteve em Manguinhos até 1909, época de grande crescimento da instituição, a qual, já em 1908, passou a chamar-se Instituto Oswaldo Cruz. Nesse tempo, muitos cientistas estrangeiros ali estiveram a convite, merecendo destacar, entre esses, Gustav Giemsa e Stanislas von Prowazek.

Em 1906 Rocha Lima tinha voltado à Alemanha comissionado por Oswaldo Cruz para observar melhorias no Instituto de Higiene de Berlim. Sua presença e seus contactos foram decisivos para o êxito da mostra do Instituto Oswaldo Cruz no XIV Congresso Internacional de Higiene e Demografia. Assim o declarou O. Cruz em sua correspondência. Naquele congresso, a medalha de ouro concedida à mostra brasileira, consagrou nacional e internacionalmente a sua ciência.

A descrição da necrose médio-lobular hepática, específica para o diagnostico post mortem na febre amarela (Sinal de Rocha Lima), que teve repercussão mundial e outros estudos, como os do isolamento do Clostridium chauvoei, na peste da manqueira, junto às ligações de Rocha Lima com a Alemanha, levaram-no a ser assediado por convites para trabalhar naquele país,

Convidado por Herman Duerk (que curiosamente, mais tarde o substituiu em Manguinhos) foi, como assistente para o Instituto de Anatomia Patológica, em Iena (1909). Oito meses depois, por influência de von Prowasek, e ao tempo em que se exonerava de Manguinhos, ingressou no “Tropeninstitut” de Hamburgo, onde permaneceu até o seu retorno definitivo ao Brasil, em 1920.

O tifo exantemático grassou nos Bálkãs durante as guerras de 1912-1913, ali desencadeadas. Temendo a difusão, os investigadores do instituto de Hamburgo foram enviados para seu estudo na Turquia. Em 1903 Prowazek chega a observar corpúsculos semelhantes aos de Ricketts em leucócitos de doentes, mas não se sentiu autorizados a apontá-los como o agente da infecção, pela difícil distinção de detritos nas preparações. Uma vez iniciada a I Guerra Mundial, os dois investigadores foram, agora, requisitados a estudar a doença num campo de prisioneiros russos em Kottbus, em território alemão, onde houve 7.000 casos entre 10.000 prisioneiros. Rocha Lima ali chegou primeiro e registrou que, ao examinar piolhos, fora dos corpos submetidos à necropsia, a abundancia de corpúsculos ,diminutos, achados nesses insetos, chamou-lhe a atenção. Com a chegada de Prowazeki, enquanto este fazia preparações a fresco dos corpúsculos dos piolhos, infectou-se, adoeceu três semanas depois, vindo a morrer em fevereiro de 1915.

Rocha Lima adoeceu também, mas conseguiu recuperar-se. Prosseguiu então os estudos entre Hamburgo (onde cultivava piolhos isentos de infecção) e o território polonês, onde a infecção era comum em Wlodawek, às margens do Vístula. Orientou-se o investigador no sentido de não confiar em esfregaços com mistura e acúmulo de “débris” celulares, mas recorrer a cortes de natureza histológica, tanto nos piolhos infectados, como nos normais, como controle. Assim pode mapear diferenças na morfologia e na situação dos corpúsculos nos insetos. Comprovou ainda a sua difícil coloração com os métodos então usados (Giemsa e azul de Loeffler).

Resumindo seus achados (1916) Rocha Lima mostrou: a) que o agente do tifo não era filtrável ou de natureza viral; b) que era de coloração difícil e facilmente assemelhado a detritos dos tecidos; c) que o microrganismo que denominou Rickettsia prowazekii tinha situação exclusivamente intracelular no epitélio gastrointestinal do inseto; d) que formas semelhantes de riquétsias apareciam em piolhos normais em posição extracelular e com tamanho e disposição diversos – a forma extracelular que chamou R. pediculi foi relacionada à R. quintana, descrita no mesmo ano por H. Töpfer na “febre das trincheiras”, e atualmente, reclassifcada como Rochalimaea quintana; e) a transmissão da doença aos cobaios por dejectos e preparações de piolhos infectados, e dos cobaios a macacos, com o sangue daqueles, vez que piolhos sadios não se infectavam com o sangue dos cobaios; f) nos doentes, “focos inflamatórios microscópicos nos vasos capilares e pré-capilares, cujas paredes apresentam lesões degenerativas e inflamatórias” – a revelação dos microrganismos em lesões de endoteliose foi descoberta complementar de S. B. Wolbach et al. em 1922; g) a possibilidade de preparo de soro (em cavalo), e vacina fenolada a partir de piolhos infectados, cujo ensaio coube a outros pesquisadores.

A contestação da prioridade de Rocha Lima é de curso habitual entre autores norte-americanos. É fácil observar e seria tedioso alinhar as sentenças dúbias ou omissas em livros didáticos dessa origem. Um depoimento devido a Otto Bier documenta que em uma reunião em Harvard, em 1939, S. B. Wolbach assim se expressou: “Delineamos (...) o trabalho pioneiro realizado sobre as rickettsioses por um francês e um americano. As honras máximas são devidas ao americano porque com brilhantismo e precisão, evidenciou fatos e indicou, pelos métodos que utilizou, a maioria das linhas principais de desenvolvimento adotadas posteriormente no estudo das rickettsioses (...) O tributo prestado por Rocha Lima (1916) ao criar o gênero Rickettsia foi uma feliz iniciativa”.

Aparece em seguida o depoimento de Henry Pinkerton, discípulo de Wolbach, que atribui ao último demonstrar um agente não viral de natureza intracelular “ nos tecidos do homem ou da cobaia, bem como nas células do revestimento gastrointestinal do piolho”. Triste e risível ante os fatos já expostos, em honra a Ricketts acrescente-se que este referiu-se aos seus próprios dados dizendo ter como objetivo “apresentar observações e estudos teóricos que foram mencionados unicamente por causa do seu valor sugestivo”. Acrescente-se a isso, uma sentença de Rui Barbosa (em outro contexto): “Por menos que valha um homem (...) ainda menos ficará valendo, quando tente ou lhe queiram engrandecer o tamanho com o empréstimo de qualidades estranhas”.

Rocha Lima é citado em livro recente, de autor brasileiro, apenas como “um pesquisador que fez várias contribuições para o melhor conhecimento das riquétsias “. É pouco! Isso aplicar-se-ia a muitos e, entre os nacionais, particularmente a Joaquim Travassos da Rosa (1898-1967), investigador paraense que, nesse tema específico, comprovou a identidade entre os agentes da febre maculosa brasileira (São Paulo e Minas Gerais) e a das Montanhas Rochosas, bem como a ocorrência do tifo endêmico (murino) no Rio de Janeiro.