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Informe Epidemiológico do Sus
Print version ISSN 0104-1673
Inf. Epidemiol. Sus vol.11 no.3 Brasília Sept. 2002
http://dx.doi.org/10.5123/S0104-16732002000300008
A construção do socioambiente insustentável
The construction of an unsustainable social environment
Carlos Minayo Gomez; Edinilsa Ramos de Souza; Jussara Cruz de Brito; Sarah Escorel; Sônia Maria Thedim-Costa
Escola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ
RESUMO
Este texto parte do pressuposto de que, enquanto espaço historicamente construído de relações econômicas, políticas, sociais e culturais, travadas entre nações, regiões e grupos populacionais, o ambiente social se situa no cerne da questão ecológica. A deterioração desse ambiente, no caso brasileiro, marcado por arraigadas desigualdades, vem gerando formas progressivas e níveis diversos de exclusão social decorrentes da vulnerabilização, precarização e violência. Mantida tal tendência, corroem-se os alicerces do desenvolvimento sustentável. Algumas dimensões dessa problemática são analisadas em determinados segmentos sociais (mulheres, jovens, idosos e população de rua) e em duas categorias de trabalhadores: os da construção civil e da educação. Conclui-se, diante do quadro apresentado, ser inviável a sustentabilidade socioambiental sem a introdução de profundas transformações no papel do Estado.
Palavras-Chave: Desenvolvimento Sustentável; Exclusão Social; Precarização do Trabalho; Violência.
SUMMARY
It is herein assumed that the social environment, as a space historically built of economical, political, social and cultural relationships among nations, regions and population groups, is in the core of the ecological issue. In Brazil, the deterioration of this environment, already marked by deep-rooted inequalities, is generating progressive forms of various levels of social exclusion due to vulnerability, precariousness and violence. If this trend persists, the foundations for the sustainable development will be gradually destroyed. A few aspects of this issue are analyzed in given social groups (women, youth, the elderly and street population) and in two categories of workers: those of civil construction and education. In light of this situation, this paper concludes that social-environment sustainability is unfeasible unless deep changes in the role of the State take place.
Key Words: Sustainable Development; Social Exclusion; Precarious Work; Violence.
Introdução
O debate sobre a questão ecológica incorpora necessariamente o que denominamos de ambiente social, espaço historicamente construído de relações econômicas, políticas, sociais e culturais, travadas entre nações, regiões e grupos populacionais. Na sociedade brasileira, a configuração desse ambiente, marcado tradicionalmente por profundas desigualdades, vem, na atualidade, exacerbando-as e impelindo expressivos contingentes populacionais a trajetórias de vulnerabilização que conduzem progressivamente a formas e níveis diversos de exclusão social. As características de iniqüidade dos modelos econômicos vigentes repercutem na saúde da população, em rota de colisão com um dos princípios estabelecidos na II Conferência das Nações Unidas sobre Meio-Ambiente e Desenvolvimento Humano (Rio-92), quando se assumia que os seres humanos estão no centro das preocupações relativas ao desenvolvimento durável e têm o direito a uma vida saudável e produtiva em harmonia com a natureza.
Com o olhar sobre esse cenário, sobretudo o urbano, caótico, opressivo e violento, pretendemos tratar, ao longo deste documento, de questões que se imbricam e comprometem as bases do desenvolvimento sustentável: a vulnerabilização, a precarização, a exclusão e a violência. Tentaremos evidenciar os reflexos deste quadro em determinados grupos sociais (mulheres, jovens, idosos e população de rua) e discutiremos a temática por meio de dois exemplos relacionados ao mundo do trabalho: o setor da construção civil e o da educação. Concluindo, faremos uma breve reflexão sobre a necessidade de introduzir mudanças no papel que vem assumindo o Estado, a fim de promover a sustentabilidade socioambiental.
Vulnerabilidade, precarização e exclusão: marcos da insustentabilidade social
A exclusão é um fenômeno que incide em grupos sociais vulneráveis, promovendo um aumento da precariedade ou mesmo a ruptura dos vínculos em diversos âmbitos da vida.
A noção de exclusão social designa ao mesmo tempo um processo e um estado. Um movimento que exclui - processos potencialmente excludentes ou vetores de exclusão - e um estado, a condição de excluído, como resultado objetivo desse movimento. As formas de exclusão social podem ser caracterizadas por trajetórias de labilidade dos vínculos sociais até sua ruptura completa, atravessando terrenos de dissociação ou desvinculação. Entre o início da trajetória e a ruptura total, existem certamente situações (ou zonas) intermediárias de rupturas parciais dos vínculos, eventualmente reconstruídos a partir da criação de novos vínculos, mais ou menos lábeis.
Destacam-se ainda as conseqüências da sobreposição das situações de exclusão num mesmo grupo social. A concentração de vetores excludentes incide sobre eles a tal ponto que a exclusão social caracteriza o próprio contexto de sociabilidade. As desvantagens sociais absolutas e relativas, segundo o caso, podem ter lugar simultaneamente e se sobrepõem umas às outras, numa tendência associativa e cumulativa.
O fim do processo de desvinculação, o estado de exclusão social, o isolamento e a privação inerentes à condição de excluído, indicando a ruptura total dos vínculos sociais primordiais, encontra uma expressão mais nítida nos moradores de rua que se apresentam desvinculados da família, do trabalho, da cidadania e sobrevivem em condições de extrema precariedade.
Entendemos, portanto, a exclusão social como um amplo processo que envolve trajetórias de vulnerabilidade, fragilidade ou precariedade e até ruptura dos vínculos, em cinco dimensões da existência humana em sociedade: trabalho, família, cidadania, representações sociais e vida.
As trajetórias de vulnerabilidade dos vínculos com o mundo do trabalho relacionam-se à diminuição dos postos de trabalho; à fragilidade dos novos arranjos laborais, onde impera a precarização manifesta em empregos de tempo parcial ou de duração eventual, com reflexo na instabilidade e irregularidade ocupacionais; às limitações de absorção da força de trabalho jovem; ao desemprego recorrente e duradouro; às dificuldades crescentes de inserção da mão-de-obra não-qualificada; e à redução de rendimentos das populações empobrecidas. Em tal cenário, o principal impacto do fenômeno da exclusão se evidencia no fato de que contingentes populacionais cada vez maiores se tornam economicamente desnecessários e supérfluos, conformando, além do denominado desemprego estrutural, uma situação em que não há, sequer como potencialidade, postos de trabalho que poderiam ser ocupados no processo de produção de bens e serviços. Para esses indivíduos, não há espaço na vida econômica. São supérfluos e desnecessários, inúteis e incômodos.
A crise do emprego transformouse em crise social porque, além da superprodução de uma mão-de-obra desqualificada, as perspectivas de trabalho não conferem qualquer garantia de estabilidade, de salário e de condições de trabalho que permitam uma integração completa e durável numa comunidade de pertencimento.
Na dimensão sociofamiliar, verifica-se a fragilização e precariedade das relações familiares, de vizinhança e de comunidade, conduzindo o indivíduo ao isolamento e à solidão. São percursos de distanciamento dos valores e das relações que estruturam o cotidiano e trajetórias de dificuldades em conseguir mobilizar apoios diante de situações de labilidade dos vínculos econômicos ou políticos. Independentemente do grau de desenvolvimento dos países, constatam-se vetores de vulnerabilidades em famílias mono-parentais.
Na sociabilidade brasileira, as relações primárias familiares, locais e comunitárias mantiveram-se como a principal referência para o indivíduo reconhecer-se como tal (unidade de pertencimento), e como o suporte mais estável perante as freqüentes adversidades oriundas do mercado de trabalho e da precariedade de proteções sociais. As desvinculações neste âmbito configuram situações de isolamento parcial ou completo e de solidão, nas quais os indivíduos não compartilham nenhum lugar social, e não estão ancorados a nenhuma unidade de pertencimento familiar ou comunitária.
Na dimensão política, a experiência dos mais pobres revela a existência, mesmo em contextos democráticos, de situações não apreendidas pelos direitos ou nas quais o exercício dos direitos não é igual para todos. Para os pobres, os direitos elementares são uma conquista diuturna. Verificam-se trajetórias de precariedade no acesso e no exercício de direitos formalmente constituídos, e de incapacidade de se fazer representar na esfera pública. Há uma fragmentação intensa, gerando estratificação da cidadania que inclui o estatuto de não-cidadão ou de um território de infracidadania, onde a “destituição de direitos se associa com a privação de um poder de ação e representação”.1 O território de infracidadania mostra que a experiência (exercício cotidiano) da igualdade guarda uma certa autonomia do âmbito jurídico formal de sua configuração. São os instrangeiros de Cristovam Buarque: “nacionais politicamente, estrangeiros socialmente” no interior de “uma cidadania partida”. Cidadania que parece ser estendida a todos, mas se apresenta de forma diferente conforme a posição social do indivíduo.2 A fragilização dos vínculos de cidadania acentua a privatização da experiência social.1
Desde a transição democrática até o momento atual, ocorreu no Brasil um processo de ampliação dos direitos, mas, também, uma cidadanização seletiva. Isto porque, pessoas submetidas a carências materiais extremas, em seu aprisionamento no reino das necessidades, encontram enormes obstáculos para conseguir apresentar-se na cena política como sujeitos portadores de interesses e direitos legítimos.
Entretanto, a exclusão social deve ser entendida além dos componentes de sua produção (vínculos econômicos) e de sua consolidação (vínculos sociais e políticos), nos elementos que a tornam natural (vínculos culturais e éticos). É no terreno dos hábitos e costumes, no cotidiano social, nas interações sociais, no âmbito cultural, no eixo de troca de valores simbólicos, que a exclusão se manifesta de maneira mais radical, criando dois mundos.
O obscurecimento e a invisibilidade característicos da pobreza, bem como a estigmatização inerente à discriminação, são acrescidos da indiferença, do conformismo e da fatalidade. Trajetórias de desvinculação dos valores simbólicos podem conduzir à experiência de não encontrar nenhum estatuto e nenhum reconhecimento nas representações sociais. Certas formas de representação coletiva situam as pessoas tão distantes de nosso universo mental, tão fora de nosso pensamento, que “é como se elas não existissem”. São caminhos de não-reconhecimento, de indiferença, de negação da identidade ou de identidade negativa, de estigmatização e de criminalização da diferença. As interações sociais marcam nitidamente a discriminação, estigmatização e criminalização da pobreza.
Nos processos de exclusão social, a escala de estranheza atinge o limite de retirar do outro seu caráter humano. A existência humana na indigência, restrita ao atendimento das mais poderosas necessidades do processo vital, é obscurecida e desumanizada. Essa diferenciação extrema se insere numa cultura que envolve a naturalização da pobreza e seus corolários - banalização, indiferença, fatalidade e conformismo - quadro em que a pobreza é aceita, sem indignação e reações, como integrante (estrutural, perene) do cenário social. “Transformada em paisagem, (a pobreza) é trivializada e banalizada e não interpela responsabilidades individuais ou coletivas”.1
Na dimensão humana, no mundo da vida, a exclusão social pode atingir o seu limite, o limiar da existência humana. Os grupos sociais excluídos que se vêem reduzidos à condição de sobreviver, de manter seu metabolismo em funcionamento, são expulsos da idéia de humanidade e, por vezes, da própria vida. Os grupos sem vínculos com os mundos da família, do trabalho e da cidadania, que não têm direitos a ter direitos, não interessam a ninguém, são supérfluos e desnecessários à vida social, são descartáveis, e podem ser eliminados das mais diferentes formas, ostensivas ou opacas, que ninguém os reclamará. Sua eliminação matando, mandando matar ou deixando morrer - não é objeto de questionamento de omissões públicas e sociais.
A exclusão social caracteriza-se não só pela extrema privação material, mas, principalmente, porque essa mesma privação material desqualifica seu portador, no sentido de que lhe retira a qualidade de cidadão, de brasileiro (nacional), de sujeito e de ser humano, de portador de desejos, vontades e interesses legítimos que o identificam e diferenciam. A exclusão social significa, então, o não encontrar nenhum lugar social, o não pertencimento a nenhum topos social, uma existência limitada à sobrevivência singular e diária. Mas, e ao mesmo tempo, o indivíduo mantém-se prisioneiro do próprio corpo. Não há (mais) um lugar social para ele, porém ele deve encontrar formas de suprir suas necessidades vitais e sobreviver sem suportes estáveis materiais e simbólicos.
Violência: causa e efeito da insustentabilidade social
A violência é concebida, no Plano Nacional de Prevenção aos Acidentes e Violências do Ministério da Saúde,3 como “quaisquer ações realizadas por indivíduos, grupos, classes e nações, que ocasionam danos físicos, morais e espirituais a outrem”. Nesse sentido, apresenta profundos enraizamentos nas estruturas sociais, econômicas e políticas, bem como nas consciências individuais, numa relação dinâmica entre agentes e agressores. Pode-se dizer, portanto, que não há um fato denominado violência, mas sim múltiplas formas de violência, o que exige entendê-la a partir de um conceito ampliado, capaz de englobar os aspectos históricos, sociais, econômicos, políticos e culturais que a constituem. Trata-se de um fenômeno de difícil conceituação, complexo, polissêmico e controverso, devido ao teor de ideologia do qual se reveste, cuja abordagem implica a adoção de uma visão intersetorial e interdisciplinar.4 Assim, a aproximação à violência necessita articular as diversas formas pelas quais se expressa nos contextos macroestruturais e conjunturais, por um lado. Por outro, faz-se também necessário identificar as áreas, as dinâmicas relacionais e os grupos sociais mais envolvidos e vulnerabilizados, enfocando tanto o ponto de vista dos vitimizados como o de seus agressores.
No presente, as diversas formas de exclusão social conduzem a uma violência difusa, forjada no cruzamento do social, do político e do cultural, que se associa a um estado de desagregação, decomposição social e individualismo crescente. Na expressão de Wieviorka,5 representa mais uma violência infrapolítica atribuível ao enfraquecimento de um Estado freqüentemente corrompido, ineficaz, deslegitimado, em virtude de suas próprias carências e das práticas inerentes ao crime organizado. Mesmo a criminalidade mais banal, porém crescente, desenfreada, não emerge de conflitos sociais e políticos abertos.
A anomia suscita violência sem projeto, devastadora e autodestruidora, difícil de controlar à medida que não há um terreno de negociação, com o risco de explosões nas zonas de fragilidade urbana. A violência moderna reflete:
“a impossibilidade para o ator de estruturar sua prática em uma relação de troca mais ou menos conflitiva. Ela expressa a defasagem ou o fosso entre as demandas subjetivas de pessoas ou grupos, e a oferta política, econômica, institucional ou simbólica. Traz a marca de uma subjetividade negada, arrebatada, esmagada, infeliz, frustrada, o que é expresso pelo ator que não pode existir enquanto tal. Ela é a voz do sujeito não reconhecido, rejeitado e prisioneiro da massa desdenhada pela exclusão social e pela discriminação racial”.5
A exigência de ampliação dos marcos conceituais e metodológicos na análise da violência associa-se a de construir instrumentos e indicadores pelos quais possa ser mensurada, desde aqueles que permitam revelar os componentes no âmbito mais amplo da conformação da sociedade aos que expressem os aspectos microestruturais e individuais. Requer, portanto, articular diferentes áreas de conhecimento, disciplinas, conceitos, métodos e técnicas, níveis individuais e coletivos, micro e macrossociais, de forma complementar e integradora. Nesse sentido, é oportuno incorporar, na presente reflexão, certos conceitos, hoje bastante utilizados na área de saúde ambiental, tais como: sustentabilidade política, sustentabilidade econômica e sustentabilidade social.
Sob o conceito de sustentabilidade política, podem ser consideradas como violentas todas as carências e ausências de acesso às condições básicas de saúde, moradia, escolaridade, trabalho e lazer; de participação nos processos decisórios e nas políticas públicas, que vitimizam os denominados grupos sociais vulnerabilizados, fragilizados e excluídos. Enquanto grandes contingentes populacionais estiverem submetidos a essa forma de violência - violência estrutural - sem as mínimas garantias do direito à cidadania, a sustentabilidade política será inviável em nossa sociedade.
O conceito de sustentabilidade econômica permite enfocar as formas de violência embutidas na exploração dos subjugados pelo poder econômicofinanceiro, que se expressa, entre outros efeitos, na desigualdade da distribuição de renda. Possibilita, ainda, abordar a questão das supostas opções pela criminalidade, tanto dos criminosos de colarinho-branco, como dos bandidos pés-de-chinelo. Em última instância, é previsível a exacerbação dos confrontos quando a excessiva ganância e privilégio de uns se contrapõem a opressão e pilhagem de outros. Entende-se, portanto, que sociedades estruturadas nessas bases se tornam insustentáveis.
Finalmente, segundo o conceito de sustentabilidade social, cabe incluir toda a dinâmica das relações sociais violentas que abrangem desde as manifestações culturais de discriminação de gênero, raça e preferência religiosa e sexual até a corrupção e impunidade; desde as ações homicidas no âmbito interpessoal e privado, às que ocorrem em escala internacional, como no caso de conflitos bélicos e do narcotráfico.
Em síntese, um meio ambiente sem violência não se coaduna com a iniqüidade política, econômica e social. Da mesma forma, compromete-se a sustentabilidade, em qualquer nível, ante os atuais índices de violência. Trata-se, portanto, de uma relação dialética em que a atuação sobre um dos pólos relacionais, necessariamente, afeta o outro, assim como as ações e políticas públicas ambientais influenciam as consciências individuais e se retroalimentam.
Sustentabilidade política, econômica e social requerem eqüidade, justiça e garantia de direitos. Tais condições implicam relações mais igualitárias e, por conseguinte, menos violentas e mais saudáveis.
Vulnerabilidade em grupos sociais
A vulnerabilidade social adquire particular visibilidade em determinados segmentos da população jovem e idosa. As diferenciações provenientes da questão do gênero representam um componente que incide significativamente na configuração dessa problemática. Os moradores de rua são expressão extrema do processo de exclusão social, engendrado na confluência de situações de vulnerabilidade.
Jovens e idosos nos (des)caminhos da exclusão social
Num contexto de exclusão social e violência, os jovens constituem um dos grupos de maior vulnerabilidade, dadas as suas carências no plano familiar, educacional, de habitação, de atendimento à saúde e mesmo de lazer. Uma grande parcela encontra-se alijada do ensino formal por não conseguir, entre outras razões, compatibilizar sua permanência na escola com a necessidade de inserção precoce e precária no mercado de trabalho. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD) de 1995 são reveladores dessa situação: 11,9% dos jovens do Rio de Janeiro e 21,6% do país eram analfabetos funcionais.
Tal constatação torna-se dramática, numa época em que a exigência do ensino fundamental, como pré-requisito para o ingresso no mercado de trabalho, vem sendo substituída, cada vez mais, pela demanda de ensino médio, embora, conforme ressalta Pochmann,6 o avanço na escolaridade é quase imperceptível na elevação do nível de emprego. Observa-se, inclusive, uma diminuição dos postos de trabalho ocupados por jovens nos setores assalariados e um aumento nos setores autônomos, crescendo as barreiras de acesso ao primeiro emprego e de manutenção na ocupação. Outro agravante é o declínio da participação relativa dos trabalhadores mais jovens, na faixa de até 29 anos, na população empregada. Entre os anos 1980 e 1995, caiu de 53,1 para 37,9%.7
Diante desse cenário de vulnerabilidade da população jovem de baixa escolaridade, sem qualificação profissional, e na ausência de orientação por parte das instituições potencialmente socializadoras, existe o risco concreto de serem os jovens absorvidos pelos segmentos mais marginalizados do setor informal. Nesses casos, a linha divisória entre derivar ou não para a delinqüência é extremamente tênue. Sua captura por atividades à margem da legalidade significa conviver permanentemente com situações iminentes de risco de vida. Esses riscos são claramente perceptíveis nas elevadas taxas de mortalidade por violência entre jovens. Atualmente, no país, a violência é a principal causa de morte desse grupo populacional: em cerca de sete entre cada dez jovens que morrem nos grandes centros urbanos brasileiros, há, hoje, um homicídio ou um acidente de trânsito como causa de morte.8 As vítimas dessa mortalidade precoce são majoritariamente os jovens das periferias das nossas grandes metrópoles, principais alvos dos processos de vulnerabilização, fragilização e exclusão anteriormente descritos.
Convivemos, no Brasil, com um vácuo de políticas públicas efetivas que atendam ou possam criar mecanismos de integração deste segmento populacional, em diferentes âmbitos: econômico, familiar, social, laboral e cultural. Carecese de propostas capazes de fornecer uma preparação condizente com os requisitos atuais para acesso a um mercado altamente competitivo. É ilustrativo, nesse sentido, que o Plano Nacional de Formação do anterior governo federal,9 implantado em municípios selecionados pelo Programa da Comunidade Solidária, restrinja-se fundamentalmente a:
a) oferecer cursos de curta duração para jovens em situação de extrema pobreza das periferias urbanas;
b) minorar os efeitos do desemprego, para os maiores de 18 anos inscritos no serviço civil voluntário, que prepara para o trabalho social em instituições e comunidades, concedendolhes uma remuneração simbólica; e
c) qualificar, por intermédio do programa de jovens empreendedores, os recém-formados de cursos técnicos ou superiores para se beneficiarem de linhas de crédito popular, financiadas por vários fundos, e iniciarem empreendimentos, particularmente formação de cooperativas e associações de produtores.
Com exceção deste último programa, trata-se de políticas de caráter emergencial, o que necessariamente não garante a instauração de um processo de inclusão social.
No tocante à saúde, observa-se a incipiência ou mesmo a ausência de programas de atendimento integrado que contemplem a demanda dos problemas atuais dos jovens. Assim, verifica-se o crescimento vertiginoso da gravidez na adolescência e o aumento do uso de drogas, em paralelo à crescente incidência de doenças sexualmente transmissíveis, como Aids e hepatites.10 Os problemas ligados à gravidez já são apontados como principal causa de internação hospitalar, no Rio de Janeiro, entre as adolescentes, contrariando a tendência de queda na taxa de fecundidade em outras faixas etárias.11 Entre as menores de 19 anos, a elevação dessa taxa foi de 11,8%, em 1976; 14,1%, em 1985; e 15,8%, em 1989.11 Os homicídios vêm-se constituindo como principal causa de morte entre os jovens do sexo masculino12,13 e, na maioria das vezes, encontram-se associados a atividades ilegais, como o uso e tráfico de drogas, conforme demonstram alguns estudos.14,15 Essas tendências transformaram o perfil de morbimortalidade do jovem brasileiro, de um padrão de doenças infecciosas e parasitárias para as causas violentas.16 Entretanto, os serviços de saúde não estão ainda equipados; carecem de leitos hospitalares suficientes e de profissionais treinados para prestar um atendimento adequado e resolutivo diante dos problemas com que se deparam.
A fragilidade das políticas sociais voltadas para esses jovens conduz à perpetuação de suas condições gerais de existência e os transforma em elos involuntários de uma cadeia de reprodução dessas condições. Nem após uma década da instauração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), foi possível garantir os direitos da infância e da juventude brasileiras.17 Mantêm-se, ainda, sérios entraves nos investimentos pontuais que determinadas organizações governamentais e não-governamentais vêm realizando na reversão progressiva desse quadro revelador.
Idosos
As seqüelas da vulnerabilidade e da exclusão social fazem-se também presentes numa parcela significativa da população idosa, em contínuo crescimento. Proporcionalmente, os idosos representavam, em 1940, 4,1% da população total do país; 4,3% em 1950; 4,7% em 1960; 5% em 1970; e, para o ano 2000, essa proporção era estimada em 6,9%.
Excluídos do mercado de trabalho, em sua maioria com rendimentos irrisórios provenientes da aposentadoria, quando chegam a obtê-la, os idosos se defrontam com problemáticas de saúde próprias do envelhecimento, freqüentemente associadas ao desgaste decorrente do trabalho exercido sob condições insalubres. No estudo realizado por Souza e colaboradores18 sobre a mortalidade desse grupo no Estado do Rio de Janeiro, no período de 1979 a 1994, observou-se que as principais causas de morte eram as doenças do aparelho circulatório, os neoplasmas e as doenças do aparelho respiratório. As mortes por causas externas representavam a sexta principal causa, com cerca de 3,5% do total de óbitos, tendência estatisticamente decrescente. Neste grupo de óbitos, os acidentes de trânsito e transporte, as quedas e os homicídios foram as causas externas específicas que mais vitimaram os idosos. Souza e colaboradores19 em 1999, analisaram as internações dessa população idosa em dois hospitais municipais do Rio de Janeiro. Esse estudo,19 que foi parte de uma pesquisa realizada em 1996,19,20 apontou as quedas, no interior do próprio lar, e os acidentes de trânsito e transporte, como as principais causas de procura por atendimento médico de emergência. Nos dois artigos, destaca-se a condição de desamparo e solidão em que vivem.
Num momento em que a proteção social se torna imperativa, o Estado se ausenta do dever de garanti-la, remetendo essa incumbência para as famílias. Os idosos passam, então, a representar um ônus que nem sempre os familiares conseguem absorver, em virtude das próprias carências ou do qual se eximem por razões diversas. Nessas circunstâncias, em seu cotidiano, prevalece a convivência com o descaso, o isolamento, a solidão, a insegurança e o medo. E o que é mais grave: mesmo no ambiente doméstico, não é incomum constatá-los submetidos a comportamentos discriminatórios, à espoliação de seus parcos recursos financeiros e vitimados por formas diversas de violência.
Um avanço para responder às exigências de atenção à saúde dessa população consistiria em implementar as diretrizes estabelecidas, em 1996, pelo Ministério da Saúde,21 que incluem desde a articulação e as responsabilidades institucionais, até o acompanhamento e avaliação das ações relativas à legislação existente sobre a Política Nacional de Saúde do Idoso. Essas diretrizes contemplam, além dos diversos aspectos envolvidos na promoção de um envelhecimento saudável, o apoio ao desenvolvimento de cuidados informais, a capacitação de recursos humanos especializados e a realização de estudos e pesquisas.
Na ausência e fragmentação de ações, cujo conjunto ultrapassa o setor saúde, os idosos das classes populares têm hoje vida mais longa, mas não necessariamente mais digna, permanecendo em estado de vulnerabilidade, fragilidade e, mesmo, de exclusão extrema.
As trajetórias de vulnerabilidade associadas às relações de gênero
A subordinação fundada nas relações de gênero reflete-se tanto em formas de violência (agressões físicas e sexuais) quanto em efeitos sobre o estado nutricional, o acesso à educação, a participação no mercado de trabalho, bem como a possibilidade de controle da fertilidade e de autonomia. Entretanto, a natureza dessa dominação pode se expressar com maior ênfase em condições de trabalho precárias, no caso das mulheres pobres, ou no controle de mobilidade física e da sexualidade feminina, para as demais,22 que são na verdade aspectos indissociáveis.
No Oitavo Encontro Internacional Mulher e Saúde, Petchesky23 afirmou que a política dos direitos reprodutivos e sexuais para o ano 2000 precisava estar articulada à questão da posição da mulher na economia global e às dimensões de gênero do desenvolvimento humano sustentável. No Brasil, em 25,9% das famílias, a pessoa de referência (chefe de família) é uma mulher.24 No entanto, ao comparar as famílias chefiadas por homens com as lideradas por mulheres, observa-se um grande contraste: em 90% das primeiras há a presença do cônjuge contra a pequena percentagem de 9,1% para o segundo caso. Esse é um indicador de diferenças existentes nas estruturas familiares, que podem gerar maior ou menor nível de vulnerabilidade, particularmente quando consideramos a defasagem entre os salários dos trabalhadores e das trabalhadoras. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios,24 7,8% das mulheres ocupadas têm um rendimento mensal no trabalho principal que não passa de meio salário mínimo, 25,8% delas recebem até um salário mínimo, enquanto 19,8% não têm rendimentos. Para estas mesmas faixas de rendimento, há 4,45% (até meio salário mínimo) e 18,4% (de meio a um salário mínimo) de homens. As porcentagens se invertem quando analisamos as faixas superiores: apenas 3% de mulheres têm remuneração maior que 10 salários mínimos (os homens chegam a 8%) e 7%, entre 5 e 10 salários mínimos (11,6% de homens).
Mais do que registrar essas desigualdades, consideramos fundamental entendê-las como expressão das relações sociais de sexo (relações de gênero); enfatizando que essa relação, conforme Kergoat25 significa contradição, antagonismo e luta pelo poder. As relações de gênero atravessam o mundo da reprodução e da produção, conferindo uma noção de valor do trabalho das mulheres, a partir de uma definição sociocultural do sexo feminino.
Sinalizamos que as trajetórias de vulnerabilidades dos vínculos com o mundo do trabalho envolvem a precarização e a falta de acesso tanto às tecnologias modernas quanto à requalificação, de acordo com o perfil de força de trabalho flexível e polivalente demandado pelo mercado em transformação. A precarização materializa-se também no trabalho não remunerado, a domicílio, terceirizado, informal, em ambientes cada vez mais nocivos e com atividades ainda mais desgastantes (exclusão dos meios que contribuem para o bem-estar: saúde, prazer e auto-estima).
Essas trajetórias estão relacionadas às divisões sociais do trabalho, particularmente àquelas existentes no plano internacional (posição dos países na produção mundial) e às associadas às relações entre os sexos (marcadas pelo valor desigual do trabalho e por ocupações diferenciadas). Colocando em análise uma possível conexão entre as formas de divisão do trabalho na sociedade, Le Doaré26 afirmou que a terceirização em escala mundial ocorre simultaneamente à transferência das modalidades de divisão sexual do trabalho dos países dominantes para os periféricos. Seria esse um mecanismo que favorece a persistência e similaridade encontradas na divisão sexual do trabalho em países contrastantes no nível de desenvolvimento econômico e tecnológico.27
Em 1998, cerca de 16,9% da ocupação das mulheres dava-se em emprego doméstico. Entre as inseridas no mercado de trabalho, 11,4% trabalhavam sem remuneração financeira, e em grande parte, ligavam-se ao setor agrícola. Apenas 7% dos homens encontravam-se nessa situação. Outras 7,9% permaneceram nas atividades de subsistência, nas quais o percentual de homens foi de 1,8%, produzindo para o seu próprio consumo sem estarem incorporadas ao mercado de trabalho, seja ele formal ou informal.27
É importante assinalar que as mulheres realizam uma grande quantidade de trabalho não pago, o que reforça sua vulnerabilidade. Não só os afazeres domésticos, mas, também, os voltados a cuidar da família, que apresentam componentes emocionais importantes e consomem muito tempo. Esse fato deve ser analisado pela sua importância na reprodução do quadro de pobreza e precariedade referente às relações de gênero.
O trabalho a domicílio é também uma modalidade relevante quando se discute a questão das mulheres. Além de apresentar-se na sua forma tradicional (por exemplo: costura), configura uma nova estratégia de produção do setor de serviço (tele-trabalho). É interessante ressaltar que se, por um lado, essa modalidade de trabalho está associada à precariedade, em função dos frágeis vínculos trabalhistas estabelecidos, pode representar, por outro, um meio de vida fundamental, conquistado por meio da experiência (e qualificação) adquirida. Esse paradoxo é mostrado pela pesquisa realizada por Abreu e Sorj,28 na cidade do Rio de Janeiro, onde costureiras domiciliares entrevistadas expressaram que se vêem simultaneamente numa situação de estabilidade, em relação às atividades de costura, e de instabilidade, quando se referem ao emprego. Em outras palavras, a qualificação adquirida informalmente no espaço doméstico pode se constituir na única possibilidade de proteção contra a exclusão.
Moradores de rua: personagens e cenário da exclusão social
A população que mora nas ruas é personagem e cenário no ambiente social das grandes cidades do país. Embora não compartilhem características homogêneas, suas histórias de vida traduzem trajetórias de fragilidade e ruptura dos vínculos sociais em diferentes dimensões. Oriundos, em sua maioria, de famílias de trabalhadores pobres, antes de morar nas ruas eram cercados por várias vulnerabilidades: econômica, educacional, afetiva, habitacional, discriminação e exposição à violência. Já estavam situados nas franjas da sociedade de forma tão limítrofe que apenas um incidente, uma crise, um infortúnio os conduzem para a zona da desvinculação completa, para a zona da exclusão. Pesquisas29,30 indicam que, em situações de desemprego crônico (longo), maior que um ano, um episódio de doença ou um acidente é o suficiente para atirar uma pessoa nessas circunstâncias na zona de exclusão e torná-la um dependente da assistência social naqueles países em que o sistema de proteção social é amplo, o que não é o caso do Brasil.
Um contingente enorme de brasileiros vive nas zonas de vulnerabilidade, nas quais alguns vínculos se apresentam frágeis ou mesmo rotos, mas outros, ainda preservados, lhes servem de âncora social, resguardando um lugar de pertencimento. Diante da ausência de universalização da cidadania, geralmente é o núcleo familiar que fornece um lócus estável por onde pensar e valorar a existência social, reforçando a privatização da vida social em que os valores da família, do âmbito privado, conferem os parâmetros a partir dos quais se julga e valora a experiência social.
Os moradores de rua são a expressão mais nítida de pessoas em estado de exclusão social, do resultado final de processos de desvinculação, de ruptura dos vínculos sociais primordiais. Minayo e colaboradores31 referem-se a essa população como a expressão paradigmática antiecológica da violência social brasileira, ao estudarem os meninos e meninas de rua que se apresentam desvinculados da família, do trabalho, da cidadania e sobrevivem em extrema precariedade, sob exposição pública. Isolamento e privação são características de sua condição de excluído. A população de rua tem simbolicamente para a sociedade o significado de lixo, despojos (de gente), inúteis, desnecessários, uma população excedente. Excedente no sentido de que sua existência não encontra nenhum lugar de pertencimento social. É o limite da desvinculação, em vida, só ultrapassado na morte.
As pessoas que moram nas rua são personagens do drama social, expondo a todos a que ponto de degradação atingem as condições da vida urbana. Constituem também o próprio cenário social, parte da paisagem urbana. Assim naturalizados, deixam de interpelar responsabilidades públicas e coletivas, propiciando a omissão em relação aos suportes improteláveis. Os indivíduos continuam prisioneiros do próprio corpo e devem encontrar formas de suprir suas necessidades vitais, de sobreviver sem contar com apoios estáveis materiais e simbólicos. A existência limitada à sobrevivência singular e diária envolve uma diferença desumanizadora que não reconhece nenhuma similitude entre nós e eles, sequer como ser humano, o que reveste seu cotidiano de um misto de indiferença e hostilidade.
A atual precarização do trabalho
A precarização do trabalho, a informalidade, o desemprego em massa e de longa duração encontram-se inscritos nas profundas transformações do modelo econômico, decorrentes da reestruturação produtiva, da integração mundial dos mercados financeiros, da internacionalização das economias, da desregulamentação e abertura dos mercados. Os imperativos do crescimento econômico e da competitividade no mercado regem a atual lógica de reestruturação produtiva32,33 e a conseqüente flexibilização das formas de organização do trabalho.34-37 Em suas causas e conseqüências políticosociais, vêm, sobretudo na última década, atingindo, de forma acelerada e diferenciada, amplos setores da população trabalhadora. Tais mudanças, em grau e extensão diferentes entre países e no interior deles, geram permanentes incertezas, novas tensões e aprofundamento das desigualdades sociais.
Essa degradação das condições materiais de vida, das formas de reprodução, aliada à ausência de mecanismos de proteção social bem como à desestruturação e reconstrução de identidades geradas em torno do trabalho, configura, em sua complexidade, a nova questão social. Sua amplitude e centralidade se assemelham às suscitadas pelo pauperismo da primeira metade do século XIX, como afirma Castell,38 para quem:
“no momento em que os atributos vinculados ao trabalho para caracterizar o status que situa e classifica um indivíduo na sociedade pareciam ter-se imposto definitivamente, em detrimento de outros suportes da identidade, como o pertencimento familiar ou a inscrição numa comunidade concreta, que essa centralidade do trabalho é brutalmente colocada em questão enquanto sentido da experiência humana, inclusive como fator associado ao crescimento. Teremos chegado a uma quarta etapa de uma história antropológica da condição de assalariado, etapa em que uma odisséia se transforma em drama?”
Esse quadro de progressiva precarização39,40 reflete a ruptura do antigo paradigma do mercado de trabalho.41 A precarização, o não-trabalho, é mais do que o desemprego. Como avalia o próprio autor, evocando Hannah Arendt, mesmo sem desconhecer o frágil equilíbrio das décadas precedentes, é o reaparecimento de um perfil de trabalhadores sem trabalho, os quais ocupam na sociedade, literalmente, um lugar de supranumerários, de inúteis para o mundo.
A gravidade da precarização e do desemprego, quando instalados, está na tendência a se perpetuarem, dada a ausência de alternativas previsíveis. Passam a fazer parte da dinâmica de erosão de uma modernidade que aponta para a desagregação da sociedade do trabalho e do modelo do Estado do Bem-Estar Social, cujas bases de sustentação pressupunham o pleno emprego, a estabilidade e a seguridade social. Não cabe esperar que a lógica do livre jogo das regras do mercado possibilite reabsorver essa população deslocada, à margem de qualquer sistema previdenciário.42 Competitividade e rentabilidade não combinam com solidariedade e coesão social. Enfrentar o acelerado crescimento de contingentes ocupacionais economicamente desnecessários e supérfluos que ampliam as dimensões do desemprego estrutural, sem a menor chance de acesso ou reingresso a postos de trabalho, sem espaço na vida econômica, é o maior desafio imposto pelo fenômeno da exclusão. Essas mudanças colocam em questão as bases futuras dos sistemas democráticos.
Ilustramos, a seguir, em duas categorias de trabalhadores, diversas manifestações da atual precarização do trabalho.
Trabalhadores de educação na escola pública
Conforme a Organização Internacional do Trabalho (OIT),43 houve, nos países pobres, na década de 80, uma queda nos salários dos profissionais de educação, simultaneamente reduzindo-se os gastos com os alunos, aumentando-se as turmas e diminuindo-se o número de matrículas, rebaixando-se a qualidade e quantidade de material escolar. As conclusões da Reunião sobre o Impacto do Ajuste Estrutural Sobre o Pessoal Docente, realizada em Genebra (abril de 1996) assinalam que as condições de trabalho dos professores e de outros profissionais de educação estão estreitamente relacionadas com a qualidade de ensino.
No caso do Brasil, o sistema educacional público tem sido levado a um quadro de precarização e degradação, onde o sucateamento das escolas revelase no abandono dos equipamentos e instalações, assim como na crescente depreciação dos(as) trabalhadores(as), via rebaixamento salarial e precárias condições para a realização de suas atividades. Nesse movimento, importase a ótica empresarial e seu discurso gerencial para a escola pública, com novas propostas e experiências racionalizadoras, como a da terceirização de algumas funções. Um dos efeitos perversos tem sido o abandono crescente da profissão, principalmente pelos professores(as), que são os trabalhadores com maior visibilidade social na escola.
Em uma espiral descendente, com a carência de profissionais para realizar as atividades escolares, a situação de trabalho piora ainda mais para os que ficam. Em pesquisa realizada a partir da demanda do Sindicato dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro, observouse que a redução do número de funcionários na escola (professores, merendeiras, serventes), somada ao tempo exíguo para realizar as atividades, têm gerado uma grande sobrecarga de trabalho. Com os salários achatados, esses trabalhadores são obrigados a desempenhar outra atividade remunerada, freqüentemente no mercado informal, para garantir a própria sobrevivência e a de seus filhos.
Como são majoritariamente mulheres, vêem-se envolvidas numa tripla jornada de trabalho, ou melhor, numa jornada ininterrupta.44 Além disso, convivem com a vulnerabilidade social no cotidiano de trabalho, deparando-se com a fome, o desemprego, o abandono, a falta de saneamento, a marginalidade, a prostituição e a miséria encontrada em várias comunidades onde trabalham.
Quando já não suportam continuar trabalhando regularmente, pedem socorro, sendo a readaptação uma alternativa possível. Para nós, a chamada readaptação é um dos indicadores do processo de degradação da saúde pelo qual vem passando o grande contingente formado por trabalhadoras(es) de escola. Ocorre na medida em que as(os) trabalhadoras(es) percebem sintomas, doenças e seqüelas que as(os) impossibilitam de realizar as tarefas previstas, cabendo aos peritos do aparelho do Estado a confirmação (ou não) do mal e recomendação (ou não) de restrição de atividades ou mudança de função ou cargo. Na situação de readaptadas(os), novas dificuldades surgem, pois declaram sentir-se diferentes e, em vários momentos, comentam a presença de um ritual de humilhação, como se fossem simuladoras(es), como se armassem uma farsa para se evadir do trabalho. As próprias colegas muitas vezes reagem negativamente às que obtêm reconhecimento médico de seus males, recusando sua legitimidade por meio de críticas e ironias, parecendo estar em curso o que a Psicodinâmica do Trabalho denomina ideologia defensiva.45
Os 4.020 casos de readaptação analisados para o conjunto de servidores da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro, no período de 1993 a 1997, chamam atenção por seu aumento anual progressivo: de 524 casos em 1993 a 879 em 1997, com um aumento de 67%. A nosso ver, esse salto merece atenção, pois pode ser interpretado como um indicador do agravamento do quadro de saúde na sua relação com a redução do número de efetivos e conseqüente aumento de pressão física e psicológica para a realização das atividades.46 As principais clínicas que motivaram os casos de readaptação junto à perícia médica, durante esse período, foram, no caso de merendeiras e serventes, respectivamente: cardiologia (31,7 e 38,4%), ortopedia (21,8 e 20,7%), reumatologia (14 e 11,8%) e clínica médica (10,3 e 8,4%). No que tange às(aos) professoras(es), destacaram-se a psiquiatria (27,4%) e a otorrinolaringologia (24,3%), seguidas da cardiologia (14,8%) e ortopedia (8,3%).
Outros estudos47,48 realizados no país sobre o trabalho nas escolas públicas complementam essa análise. Em João Pessoa, Neves47 identificou, entre as(os) professoras(es), os seguintes fatores ansiógenos: não-reconhecimento social do seu trabalho; vivência de isolamento; ansiedade provocada por taxas de reprovação e abandono dos alunos; avaliação direta ou indireta da competência da professora; relações hierárquicas (burocráticas e autoritárias); baixos salários e o medo do perigo de adoecimento, principalmente de problemas relacionados com a voz e com o esgotamento profissional. Ao acompanhar e analisar a implantação das políticas educacionais e seus efeitos no trabalho docente em Vitória, Barros48 encontrou um quadro onde a intensificação da jornada de trabalho, a precarização do trabalho docente, a perda dos espaços coletivos de discussão, a centralização das decisões administrativas e pedagógicas e a culpabilização dos docentes pelos resultados obtidos nas escolas, marcam o trabalho das(os) educadoras(es).
Trabalhadores terceirizados na construção civil
A construção civil constitui uma expressão paradigmática da sociedade da insegurança: desde a instabilidade dos vínculos laborais e dos rendimentos deles decorrentes, à precarização das condições, muitas vezes já precárias, de exercício de suas funções. Setor de reconhecida importância por sua finalidade, é contraditoriamente marcado por um processo de trabalho que propicia, na ausência ou fragilidade de práticas preventivas, a constante convivência com situações de risco, comprovada pelo expressivo número de acidentes, inclusive incapacitantes e fatais. Por outro lado, a mão-de-obra inserida na categoria, com exceção dos profissionais mais qualificados, sempre foi composta de um contingente significativo de pessoas que deixaram seus lugares de origem em busca de melhores condições de vida. Tal fato complexifica os impactos sobre a saúde física e mental decorrentes das condições de trabalho, ampliando-os aos derivados do desenraizamento de laços afetivos, da perda de referenciais e da constante busca de reestruturação de vínculos societários no âmbito das grandes cidades, com seus códigos e valores tão diferenciados da cultura original.
Se a qualidade de vida desses trabalhadores já era questionável num cenário anterior de maior estabilidade de vínculos estabelecidos com o trabalho,49,50 tende atualmente à progressiva deterioração, sob novas formas de relação contratual, onde impera uma subcontratação intensiva e extensiva, impelindo a maioria para contratos temporários, eventuais e, sobretudo, irregulares e ilegais, sem a mínima proteção aos seus direitos, dos quais abrem mão, repetidamente, por desconhecimento e ou por absoluta injunção econômica e social.
A terceirização dos serviços, nas mais variadas formas e grau de extensão, inclui, além de atividades próprias dos processos produtivos, os setores administrativos, sociais, médicos e de segurança no trabalho. Entre outras estratégias empresariais de eximir-se dos encargos sociais e dos compromissos trabalhistas, encontra-se em curso o estímulo à criação de organizações improvisadas, sob a denominação de cooperativas de trabalhadores. A maioria dos trabalhadores terceirizados não possui contrato formal, nenhuma proteção social, e está submetida a condições deploráveis de trabalho, em total desrespeito à legislação vigente e às cláusulas elementares da convenção coletiva da categoria. Entre os que procedem de outros estados ou residem em regiões muito afastadas, muitos compartilham, em situações ignominiosas, alojamentos improvisados nos canteiros de obra.
A competitividade exigida para acesso e manutenção no emprego acirrase, numa conjuntura de desemprego crescente, e o compromisso com a própria sobrevivência, bem como a de seus dependentes, leva à aceitação de situações subumanas, à sujeição a um trabalho degradante e degradado pela naturalização do desrespeito à vida.
A desqualificação inicial de grande parte desses trabalhadores, principalmente nas duas primeiras etapas do processo de trabalho - fundação e estrutura - aliase à falta de treinamento. Recruta-se, de forma muitas vezes aviltante, em função de exigências contratuais de cumprimento de prazos das empreiteiras com as empresas contratantes, expressivos contingentes de trabalhadores. Facilitam-se, assim, nesse avassalador processo de subcontratação, a externalização de riscos e responsabilidades, e o descompromisso humano e social com os trabalhadores e suas famílias.
Nesse contexto, a análise do processo saúde-doença requer considerar não só os riscos ou cargas referentes às condições materiais dos ambientes de trabalho ou as exigências impostas pela organização do trabalho. Entre outros condicionantes que precisam ser contemplados na interpretação da origem dos agravos, assumem um peso significativo as trajetórias marcadas pela insegurança, pelo sofrimento, pela convivência com um provisório que perde seu caráter circunstancial.51-53
Os recursos às instâncias públicas, quando as empresas persistem na inobservância das determinações legais e dos compromissos assumidos quanto às melhorias a serem introduzidas nos processos e relações laborais, esbarram na ineficácia do Estado em gerar mecanismos capazes de dar conta do conjunto de problemas decorrentes da precarização. Entre os principais reflexos dessa omissão, constata-se a deficiência na consolidação de um corpo técnico atuante, tanto no âmbito do setor trabalho como no de saúde, agravada freqüentemente pela falta de entrosamento entre esses setores. Uma expressão dessa deficiência é o descompasso entre o período de permanência das empreiteiras nos canteiros e o dilatado tempo das instituições em responder às solicitações, em alguns casos aliado à mudança de razão social de empreiteiras mais denunciadas. Essa situação dificulta também o andamento dos processos encaminhados ao Ministério Público.
A vida do peão da construção civil, dada a extrema rotatividade imposta pela circulação em várias empresas, pela atuação em locais diversos, pela inconstância e fragilidade das relações de trabalho, é marcada pelo convívio com a transitoriedade, pela provisoriedade, por um constante processo adaptativo a novas realidades de trabalho e vida. Tais situações podem conduzir a um processo de dessocialização progressiva e traduzirse em doença mental ou física, pois ataca os alicerces da identidade.54,55
A vulnerabilidade a que se expõem esses trabalhadores, sob diferenciadas faces da precarização, determina uma trajetória intermediada por rupturas parciais que podem ter como desfecho uma ruptura completa, conduzindo ao desemprego recorrente e à exclusão social - com todo seu potencial desagregador- negação explícita da eqüidade, da justiça e da cidadania.
A própria deterioração da saúde, pela qual ninguém parece ser responsável, pode representar um elemento determinante de exclusão definitiva do mercado de trabalho, impelindo esses operários precários a se incorporarem, em última instância, às legiões das massas desarraigadas, dos grupos considerados supérfluos,56 sem espaço na vida econômica, na produção de bens e serviços. Restam-lhes, assim, soluções individuais para evitar a privação econômica e a desfiliação social ainda mais severas.57
A ausência de requisitos mínimos de segurança reflete-se no elevado número de acidentes graves e fatais, onde predominam as quedas, facilmente evitáveis, se nos ambientes de trabalho prevalecessem preceitos éticos de valorização da vida. De um modo geral, mas sobretudo em trabalhadores sem registro, esses eventos desestruturam famílias e, ao sofrimento gerado pela perda ou incapacitação de um de seus membros, acrescentam o decorrente da subtração de um aporte financeiro - por vezes essencial, quando se trata do principal provedor do sustento familiar - e da total desproteção social. Raramente obtêm indenizações e pensões, pois o recurso à Justiça que, em princípio, exige um longo e tortuoso percurso, é freqüentemente inviabilizado pela falta de provas, repetidamente escamoteadas.
A atual precarização do trabalho, já precarizado, em peões da construção civil revela a confluência de injunções para esses construtores anônimos da cidade do Rio de Janeiro. A novidade não reside nas relações de dominação travadas, mas no fato de que sejam justificadas pela naturalização de condutas injustas que lhes constituem a trama.
O papel do Estado na sustentabilidade social
Conforme Dupas,58
“as questões centrais envolvendo o futuro das relações entre a sociedade e os Estados nacionais estarão relacionadas à capacidade desses Estados para assumir eficientemente um novo papel indutornormativo- regulador, ao mesmo tempo em que essas sociedades consigam encontrar alternativas de como lidar com as tendência de crescente exclusão social decorrente do atual modelo econômico global”.
Isentando-se da tarefa de regulador do mercado, deixou de fornecer as bases para um compromisso de classe, sustentado no pleno emprego e na redistribuição de renda, descurando-se ainda como provedor de serviços sociais e mediador dos conflitos. O dilema atual reside em como garantir certa proteção social às crescentes populações marginalizadas, quando os recursos orçamentários destinados a essa finalidade tornam-se escassos, em virtude das restrições anteriormente apontadas e, particularmente, do primado absoluto atribuído ao mercado.
O próprio Banco Mundial mudou recentemente sua concepção liberal da função do Estado, afirmando a inviabilidade do desenvolvimento social e econômico sustentável sem um Estado atuante - e não um Estado mínimo - enquanto parceiro e facilitador.59 Nessa mesma direção, a Organização Internacional do Trabalho insiste na importância do papel do Estado, contrariando os economistas que chegam a insinuar a substituição do governo pelo mercado. A organização concluiu ainda que as intervenções do governo não podem ser vistas como contrárias à operação dos mercados, nem a expansão dos mercados pode ser percebida como prejudicial à efetividade das ações governamentais. A redução das dimensões do Estado pode ameaçar a manutenção do comércio em escala global. O que se precisa é de grandes governos.60
Impõe-se, portanto, em lugar da redução do papel do Estado, sua transformação e fortalecimento para responder aos novos desafios. Esse novo Estado, indutor-normativo-regulador atuante, teria como intransferível missão viabilizar serviços públicos essenciais - saúde, educação, habitação e amparo contra a exclusão social - para a população mais vulnerável social e economicamente. Um Estado capaz de estabelecer políticas compensatórias para frear o aumento do desemprego; de promover a redução das desigualdades, a melhor redistribuição de oportunidades; o desenvolvimento de proteções sociais e estratégias específicas para as populações que sofrem de um déficit de integração e possivelmente sejam inintegráveis. No momento presente, torna-se essencial recuperar a legitimidade e credibilidade do Estado na implementação de políticas inibidoras da exclusão social e protetoras dos já submetidos às suas seqüelas. Tal premissa é fundamental para obter a imprescindível adesão da sociedade civil no gerenciamento e no financiamento, bem como na fiscalização dos projetos e programas propostos.
É imperativo estabelecer um novo contrato social, negociado de forma ampla com todos os segmentos da sociedade civil e que, do ponto de vista securitário, abranja todos os que podem trabalhar e garanta o indispensável socorro àqueles que não podem ou estão dispensados de tal exigência por razões legítimas.
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